QUILOMBOS E QUILOMBOLAS NO BRASIL, MAS NO PARANÁ, QUEM DIRIA
[...] Tudo irá depender do grau de mobilização e organização dos negros
que juntamente com os elementos esclarecidos da sociedade irão impor
essa reparação cultural para que possamos nos encontrar como nação, pois
enquanto não incorporarmos aos nossos padrões culturais e educacionais
aquilo que temos de africano e de negro seremos uma nação inconclusa.
Pressupostos conceituais
É verdade. As noticias corriam dando conta da existência de
Quilombos em todo o Brasil, menos no Estado do Paraná. Em terras
paranaenses a diversidade étnica demonstrava-se apenas e tão somente
européia, quando toda uma estratégia de invisibilidade dos Outros que
não europeus era trabalhada. E no Paraná já houve lideranças que diziam
que:
As causas principais da existência de alguns bolsões de pobreza são de
origem étnica e histórica. O Brasil foi colonizado por povos selvagens e
o africano importado das colônias portuguesas da África. Esses povos
apesar da robustez física, eram povos primitivos que viviam no estágio
neolítico e por isso incapazes de se adaptarem a civilização industrial.
[...] São esses povos – índios, negros mulatos e caboclos – que
constituem a grande massa da pobreza do Brasil, no campo e nas favelas.
[...] Imigrantes europeus, asiáticos, japoneses, oriundos de
civilizações milenares que se dirigiram para as regiões litorâneas vivem
muito bem no Brasil. É muito raro ver-se um descendente de japoneses,
judeus, italianos, árabes ou alemães, em condições de miséria absoluta.
Isto prova que as causas principais da pobreza no Brasil são de origem
étnica, muito mais do que de possíveis influências do meio físico, da má
distribuição pública ou da tão divulgada exploração do homem pelo homem
[...].
Importa aqui antes de se relatar o trabalho que o atual Governo do
Estado está realizando junto as “Terras de Preto”, Comunidades Negras
Rurais e Comunidades Remanescentes de Quilombos (assim chamadas para “se
referir às áreas territoriais onde passaram a viver os africanos e seus
descendentes no período de transição que culminou com a abolição do
regime de trabalho escravo, em maio de 1888” ) fazer em rápidas
pinceladas acerca da questão, para assim pontuar a origem da formação de
uma massa crítica estabelecida em torno da questão quilombola e seu
imbricamento com a questão étnico-racial no Brasil.
A expressão Quilombo, deriva da palavra Kilombo da língua Mbundo do
tronco lingüístico Banto, com significado provável de sociedade como
manifestação de jovens africanos guerreiros/as, Mbundo, dos Imbangala.
Também a etimologia da palavra deriva do Quimbundo (Kilombo)
significando ‘acampamento’, ‘arraial’, ‘ povoação’, ‘capital’, ‘união’ e
ainda ‘exército’.
Necessário também se faz adiantar e de pronto explicitar que os
problemas de toda essa gente afrodescendente do “campo” e da cidade
passam necessariamente por uma demanda civilizatória histórica e
secular, ligado indissociavelmente à territorialidade enquanto locus
material e simbólico no qual toda uma visão de mundo se assenta.
Importa aqui evidenciar as duas etapas que demarcam a questão quilombola
no Brasil, tanto aos níveis dos estudos relativos ao assunto que vão de
1930 a 1970 como da intensificação desses estudos que se avolumaram
depois da Constituição de 1988 e devido aos marcos legais estabelecidos.
Para que não fiquemos à deriva, já inicialmente desnorteados quanto ao
assunto, definições sobre Quilombos e Quilombolas se impõem assim como
segue:
O Quilombo emerge como movimento identitário nos anos 70 do século XX,
fazendo referência à legislação e aos atos jurídicos que historicamente
impossibilitaram os africanos e seus descendentes à condição de
proprietários plenos. A inversão deste fato no plano dos direitos
humanos, culturais e sociais, inscreve uma nova ordem na legislação
brasileira dos anos 80, instaurando no plano do reconhecimento estatal
novos sujeitos de direitos. Expressão e palavra amplamente utilizada em
diversas circunstâncias da história do Brasil, “Quilombo’ foi
primeiramente popularizada pela administração colonial, em suas leis,
relatórios, atos e decretos para se referir às unidades de apoio mútuo
criadas pelos rebeldes ao sistema escravista, bem como às suas lutas
pelo fim da escravidão no país. Em seguida, foi também expressão dos
afrodescendentes para designar a sua trajetória, conquista e liberdade,
em amplas dimensões e significados. O caso exemplar é o Quilombo dos
Palmares, que resistiu à administração colonial por quase dois séculos.
Após a abolição do sistema colonial em 1888, o quilombo vem sendo
associado à luta contra o racismo e às políticas de reconhecimento da
população afrobrasileira, propostas pelos movimentos negros com amplo
apoio de diversos setores da sociedade brasileira comprometidos com os
Direitos Humanos (Leite, 2000).
Nessa direção os aspectos legais que normatizam e orientam direitos dos
descendentes de africanos no Brasil. em especial dos grupos
“reconhecidos” por “Terras de Preto”, Comunidades Negras Tradicionais,
Comunidades Remanescentes de Quilombos, ou propriamente, “Comunidades
Quilombolas” sobretudo, colocaram parte significativa da sociedade
brasileira em estado de alerta, pois reacenderam preocupações sempre
emanadas de um imaginário que se retro alimenta de toda uma gama de
conjecturas que perpassaram os séculos de escravidão como da
pós-escravidão, atualizadas pela retomada da problemática do negro no
Brasil. Isso está assustando, como na síndrome da “onda negra, medo
branco.”
As políticas de ações afirmativas com as suas medidas reparadoras
colocaram de sobressalto as elites que insistem em proceder social e
economicamente como no Brasil Colônia e, mais acintosamente, no
Império.
O temor secular persistente reside em um entendimento de que as lutas da
população negra, entendida como uma “posição de resistência individual
ou grupal correspondia à possibilidade de um projeto de nova ordenação
social [...]”. É esse o fantasma que ronda, persegue, as elites e
todos os segmentos comprometidos com os privilégios historicamente
determinados.
Os trabalhos acadêmicos ou ditos científicos se ressentem de abordagens
que coloquem a população de africanos e, por conseguinte, de seus
descendentes espalhados compulsoriamente pelo mundo, como sujeitos de
pressupostos civilizatórios ontológicos e axiomas conceituais
estruturais e estruturantes de pensamentos, de um modelo de sociedade,
de um cotidiano com relações de totalidades holísticas e, portanto, de
elaborações sociais complexas.
Importa aqui que tenhamos a coragem de promover uma ruptura corajosa e
determinada com “os velhos esquemas reificados pelo Ocidente como
superiores, e a exploração pioneira, a única que abre caminho e cujo
horizonte é sem fim” .
De acordo com Carlos Moore ,2007, ‘a história da humanidade permanecerá
na escuridão até que seja vislumbrada a existência de dois grandes
berços civilizatórios– o meridional, que inclui toda a África, e o
setentrional, que corresponde ao espaço euro-asiático – onde o clima
forjou atitudes e mentalidades específicas’.
Atentar para as diferenças de ambos os berços é uma tarefa inadiável e
mais do que isso, deve extrapolar a mera e simplória constatação apenas e
tão somente, devendo partir para uma reconsideração de todo o tecido
social que proporcione ações que levem a repensar e a transformar esse
país, oxalá o mundo, mediante paradigmas civilizatórios “novos”.
Perceber a xenofilia do berço meridional face a xenofobia do berço
setentrional, eis aí o grande desafio que está colocado e que pode deter
nossas ações neocolonialistas inconscientemente exercidas junto a
grupos desenraizados e desterritorializados nos dias atuais.
Dar conta ou apontar indícios de procedimentos tradicionais ou
ancestrálicos em comunidades de remanescentes de quilombos ou
quilombolas, por si só não recompõe a humanidade negra aviltada na sua
totalidade. Em face disso o que se constata é que:
O Muntu vive tomando consciência do que se tornou, do que a violência
da história fez dele. Vive comprovando a inutilidade da sua apologética
e, através dela, da universalidade abstrata. Não chega a convencer a
ninguém pela discussão, nem mesmo se faz escutar seriamente, porque o
que lhe foi negado, o que lhe foi roubado, é a língua. É só um bárbaro.
Se elementos civilizacionais como arcabouço identitário e assim
constitutivos de autoconceito, auto-imagem e, por conseguinte, de
auto-estima, não forem adicionados ao nexo da dignidade existencial
complexa do povo afrodescendente, estaremos corroborando com a
reificação de uma humanidade negra, secular e historicamente concebida
como inferior e nessa direção entendida por merecedora sempre e
continuamente de humanização e até de direitos, e jamais sujeitos de
autodeterminação independente da sua localização geográfica.
Estudos dão conta de realidades, que de certa forma, nos remetem a uma
idéia de territorialidade negra contemporânea. Assim, SKIDMORE citado
por MOURA diz que no Brasil:
[...] todas as regiões geográficas importantes tinha uma percentagem
significativa de escravos entre sua população total. Em 1819, conforme
estimativa oficial, nenhuma região tinha menos de 27% de escravos em sua
população. Quando a campanha abolicionista começou, os escravos estavam
concentrados em números absolutos nas três províncias cafeicultoras
mais importantes: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em 1872,
quando os escravos constituíram 15,2% da população do País, nenhuma
região tinha menos de 7, 8% de habitantes escravos e a taxa mais alta
era de apenas 19,5%.
De acordo com SKIDMORE, a escravidão ‘tinha se espraiado num grau notavelmente similar em cada região do País’.
As migalhas das políticas sociais que não alteram significativamente as
condições de existência de tais povos, reforçam a visão com base
iluminista presente em nosso meio e que se conjuga com a prática
neoliberal que, mesmo refutada por muitos governantes, é a base das
políticas públicas disponíveis.
Nessa esteira se assemelham as políticas (ditas) universalistas que
encontram guarida em um ideário ideológico que funciona, sim, como
retórica mas que, revolucionária e substantivamente, não alteram as
condições existênciais. Apenas sedimentam a desigualdade como a
concebida nesta hierarquia socialmente construída.
Essa demanda histórica não pode ser perdida de vista. Por isso, fazer reparação é um imperativo, por que:
“o trabalho escravo dos africanos e dos seus descendentes modelou a
sociedade brasileira durante o período que durou a escravidão, deu-lhe
um ethos dominante, estabeleceu as relações de produção fundamentais na
estrutura dessa sociedade e direcionou o tipo de desenvolvimento
subseqüente de instituições, de grupos, de classe, após a “Abolição”
(grifo nosso).
O imperativo é o de que essa dívida secular seja justamente ressarcida,
já que os alicerces da economia fundante e que até hoje sustenta o
Brasil, foi construída com a mão de obra de homens e mulheres negras
escravizadas e que contemporaneamente estão inseridas na “ciladânia”
das sociedades onde o patrimonialismo e o capitalismo imperam e agem
conjuntamente, construindo suas regras de proteção e mecanismos de
defesa dos bens amealhados mediante formas questionáveis, mas que
adquiriram status de propriedade individual, frente a legislação em sua
defesa.
O ideal é que a comunidade negra na sua totalidade fosse retirada do
estágio de cidadania em que se encontra e colocada sob os auspícios da
uma Cidadania, em primeiro lugar, como “possibilidade concreta de
participação eficiente e criativa na construção da cultura e da
história”.
Em seguida, com efetivo “acesso aos bens [...] produzidos, pela
possibilidade de livremente participar da configuração que
cotidianamente se dá a esse país, pelo reconhecimento do direito de
dizer sua voz e ser ouvido pelos outros”.
Os atores sociais e políticos que atuam junto às comunidades negras
precisam ter em mente e incutir na sua lida de reconhecimento da
alteridade afrodescendente em toda a sua cartografia civilizatória, o
que diz o autor:
[...] Existe duas maneiras principais de abordar as realidades das
sociedades africanas. Uma delas, que se pode chamar de periférica, vai
de fora para dentro e chega ao que chamo de África-Objeto, que não se
explica adequadamente. A outra, que propõe uma visão interna, vai de
dentro para fora dos fenômenos e revela a África-Sujeito, a África da
identidade profunda, originária, mal conhecida, portadora de propostas
fundadas em valores absolutamente diferenciadas.
Importa aqui ressaltar que os direitos assegurados aos quilombolas, bem
como à população negra como um todo como parte dessa dívida histórica,
vem sendo questionados pelas elites patrimonialistas cujos antepassados
foram partícipes, ou beneficiários, das políticas etnocidas, genocidas,
expropriadoras de bens materiais e simbólicos de povos e de suas
culturas, contando para isso com o apoio de juristas, como de toda uma
conformação social brasileira que ainda se apresenta, como no período
Colonial e do Império, configurada pela Casa Grande e a Senzala.
Ao não se poder falar mais de escravidão contemporaneamente, porque as
relações de trabalho estão no geral mediadas por toda uma legislação que
se inscreve nesse mundo, porém, se pode afirmar categoricamente que as
relações entre negros e brancos continuam assimétricas. Assim são
mantidas relações hierarquizadas que de tão pesadas, se traduzem em
inter-relações de cuja desumanização e inferiorização do Outro é
exercida cotidianamente e com os quilombolas esse tratamento não é
diferente, a despeito do “reconhecimento” que o Estado brasileiro vem
fazendo.
(Fonte: http://www.gtclovismoura.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=58)